quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Esclerose Múltipla pode começar no intestino

Microbioma intestinal pode estar envolvido na resposta autoimune do corpo ao sistema nervoso e consequente esclerose múltipla

    A esclerose múltipla uma disfunção elétrica, ou melhor, um problema de mielina danificada. Essa substância lipídica isolante, que cobre os nervos, facilita a transmissão de corrente elétrica através de nossos neurônios e a liberação de neurotransmissores que ajudam a operar nossos corpos e cérebros.
Pesquisadores vêm especulando há algum tempo que a deterioração de mielina observada em portadores de   EM se deve, pelo menos em parte, a uma atividade autoimune contra o sistema nervoso. Trabalhos recentes, apresentados na conferência MS Boston 2014 Meeting, sugerem que essa resposta anormal de defesa começa no intestino.
     A razão disso é que 80% do sistema imune humano residem no trato gastrointestinal. Em seu interior habitam os trilhões de bactérias simbióticas, fungos e outros organismos unicelulares que compõem os microbiomas de nossos intestinos. Normalmente todo mundo sai lucrando: os microrganismos se beneficiam de um “lar” e de um suprimento estável de alimentos, e nós desfrutamos do auxílio essencial que eles oferecem em várias funções metabólicas e digestivas.
     Como nossos microbiomas também ajudam a calibrar o sistema imune, nossos corpos reconhecem quais coabitantes deveriam estar lá e quais não. Mas evidências crescentes sugerem que quando nossa biota [conjunto de microrganismos] residente está desequilibrada, os microrganismos contribuem para inúmeras doenças, inclusive diabetes, artrite reumatoide, autismo e, aparentemente EM, ao incitar uma atividade imune malévola que pode se espalhar por todo o corpo e pelo cérebro.
O ESTUDO

   Um estudo realizado por especialistas do Brigham and Women Hospital (BWH) e apresentado na conferência de Boston, constatou que um organismo unicelular chamado metanobrevibacter, que ativa o sistema imune, é fortalecido no trato gastrointestinal de pacientes com EM, enquanto bactérias que suprimem a atividade imune são depauperadas, ou enfraquecidas.

     Outro trabalho, fruto de uma colaboração entre 10 centros de pesquisa acadêmicos nos Estados Unidos e no Canadá, relatou uma flora intestinal significativamente alterada em pacientes pediátricos com esclerose múltipla, enquanto um grupo de pesquisadores japoneses descobriu que o consumo de levedura reduz as chances de camundongos desenvolverem uma doença semelhante à EM ao alterar sua flora intestinal.

     Sushrut Jangi, um médico da equipe do Beth Israel Deaconess Medical Center, em Boston, que foi coautor do estudo BWH, acredita que até influências alimentares regionais podem estar em jogo. “Os biomas de pessoas que vivem em diferentes áreas e que consomem dietas ocidentais versus não-ocidentais são demonstrativamente diferentes”, observa. “Consequentemente, pessoas que emigram de países não-ocidentais, inclusive a Índia, onde as taxas de EM são baixas, desenvolvem um risco elevado de doença nos Estados Unidos. Uma possibilidade para explicar isso é que o ‘bioma indiano’ pode se transformar em um ‘bioma americano’”, embora ainda não existam dados para apoiar essa teoria, acrescenta.

     A teoria do microbioma está ganhando tanta força no meio acadêmico que uma coalizão de quatro centros de pesquisa americanos, chamada MS Microbiome Consortium (Consórcio do Microbioma de EM), se formou recentemente para investigar o papel dos microrganismos intestinais na doença.

  Em Boston, o grupo apresentou dados que mostram populações bacterianas gastrointestinais significativamente diferentes em portadores de EM tratados com a droga acetato de glatirâmer em comparação com pessoas não tratadas.

    Não se sabe exatamente como o fármaco suprime a atividade da EM, mas os resultados sugerem que talvez ele funcione, em parte, ao alterar a flora intestinal e, como resultado, suprimir a atividade imune anormal.
“O intestino está bem posicionado para desempenhar um papel importante no desenvolvimento de doenças autoimunes, incluindo EM”, observa Ilana Katz Sand, uma professora assistente de neurologia no Mount Sinai Medical Center,em Nova York, e membro do MS Microbiome Consortium. “Mas persistem questões importantes; por exemplo, como os medicamentos para EM afetam o microbioma, como o microbioma de uma pessoa pode afetar as respostas ao tratamento, se espécies bacterianas específicas estão associadas a uma doença mais severa e, finalmente, se podemos manipular o microbioma para beneficiar nossos pacientes”, acrescenta.

     De acordo com Katz Sand, vale à pena estudar abordagens dietéticas e probióticas para tratar de EM, assim como uma possibilidade menos palatável: o transplante fecal. Mas ela também lembrou que, em ciência e medicina, respostas raramente são simples.

    Katz Sand argumentou que, com toda probabilidade, a EM resulta de uma complicada confluência de influências genéticas e ambientais que, em última instância, podem desencadear uma atividade autoimune.

     Além de nossa flora intestinal, sabe-se que bem mais de 100 variantes genéticas, muitas delas associadas a funções imunes, contribuem para a doença; assim como fatores externos, inclusive a deficiência de vitamina D (EM é mais comum em latitudes mais altas), o tabagismo e a ingestão exagerada de sal.

    Para confundir ainda mais nossa capacidade de identificar as causas básicas da doença está o fato de que nosso código genético influencia o modo como nossos corpos e cérebros respondem a esses fatores externos.

    É possível que tanto genes como estímulos ambientais levem a microbiomas patológicos, ou que alguma combinação infeliz desses fatores conduza a um caminho autoimune comum que devasta a mielina. “Sabemos que o microbioma molda nosso sistema imune e que a EM é uma doença mediada por esse sistema de defesa. Também sabemos que genes influenciam nossos microbiomas e sistemas imunológicos”, salienta David Hafler, professor de neurologia e imunobiologia na Yale University School of Medicine, que participou da conferência, mas não esteve envolvido no trabalho sobre microbioma.

   No entanto, em vista do fato de que as incidências de EM e outras disfunções autoimunes estão aumentando, também deve haver fatores não genéticos contribuindo para a doença.

“Talvez seja uma somatória de vários pequenos fatores, como baixa contagem de vitamina D, índice de massa corporal aumentado, e ingestão excessiva de sal”, pondera Hafler, acrescentando, “mas eu não ficaria surpreso se fosse apenas algo grande, como quando se descobriu que a bactéria Helicobacter pylori, mais conhecida como H. pylori, provoca úlceras. Até agora, ninguém descobriu um microrganismo específico que esteja por trás da EM, mas acho importante continuarmos procurando”.

Fonte: Scientific American Brasil

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